Três pontos sobre…
… 30/07/1930 – Uruguai 4 x 2 Argentina
● Como era esperado, os favoritos Uruguai e Argentina se encontravam na final da primeira Copa do Mundo de futebol, repetindo a decisão da medalha de ouro olímpica em Amsterdã, em 1928. Naquela ocasião, o Uruguai venceu por 2 a 1 na partida desempate (o primeiro jogo foi 1 x 1).
A rivalidade entre os dois vizinhos já era muito forte nessa época. Montevidéu e Buenos Aires são separadas apenas pelo estuário do Rio da Prata. Essa proximidade fez com que as seleções dos dois países se enfrentassem frequentemente no início do século XX. Desde primeiro duelo (em 16/05/1901) até a decisão da primeira Copa do Mundo, já tinham disputado 94 jogos entre si, com 38 vitórias argentinas, 26 empares e 30 vitórias uruguaias, com 139 gols da “albiceleste” e 120 dos “charruas“.
Seleções finalistas entrando em campo. (Imagem: Popperfoto / Getty Images / FIFA)
Eram duas das melhores seleções do mundo na época. Segundo relatos, a vantagem do Uruguai era manter a disciplina defensiva, enquanto o individualismo dos argentinos provocava eventuais momentos de desorganização. De acordo com o que o jornalista italiano Gianni Breda relatou na época, “a Argentina joga futebol com muita imaginação e elegância, mas a superioridade técnica não pode compensar o total abandono da tática. Entre as duas seleções nacionais rio-platenses, os uruguaios são as formigas e os argentinos as cigarras”.
Protocolos iniciais entre os capitães e o trio de arbitragem. (Imagem: Bob Thomas / Popperfoto / Getty Images / FIFA)
Na antevéspera da decisão, o famoso cantor de tango Carlos Gardel, apaixonado por futebol, visitou as concentrações primeiro do Uruguai e depois da Argentina. Esse simpático gesto causou revolta na Argentina, onde Gardel era o artista mais famoso do país na época e era considerado “patrimônio nacional”. Os uruguaios amaram a visita do artista, porque o tango também é música tradicional no país. Embora francês de nascimento, morava em Buenos Aires desde os dois anos de idade e sua mãe era uruguaia.
Naquele quarta-feira, dia 30/07/1930, os portões do Estádio Centenário foram abertos às oito da manhã. Ao meio dia, duas horas antes da partida, as arquibancadas já estavam lotadas. Embora o público oficial seja de 68.346 expectadores, calculam que entre 80 mil e 90 mil tenham visto a final, porque muita gente entrou sem pagar, burlando o policiamento. Por isso, embora tenha sido o jogo com o maior público, não foi o de maior renda. A bilheteria oficial foi US$ 30.200,00, enquanto a semifinal entre Uruguai x Iugoslávia rendeu US$ 35.207.
Ainda pela manhã, o argentino Francisco “Pancho” Varallo (o mais jovem de sua equipe, com 20 anos) procurou a comissão técnica para informar que seu tornozelo estava machucado (ainda resquícios de uma pancada recebida contra o Chile), sugerindo que ele fosse substituído na final por outro atleta em melhor forma. Como a delegação portenha não tinha médico, mandaram chamar às pressas o Dr. Julio Campistaguy, médico da seleção uruguaia (e filho do presidente do país). Após um exame pouco minucioso, ele recomendou que o atacante não atuasse, provocando suspeitas do adversário. E então, os argentinos não acreditaram e resolveram examinar Varallo “de outra maneira”, na prática, com chutes em uma parede. E decidiram que ele estava em condições de atuar. Segundo o jogador, ele não podia sequer se mexer.
Varallo foi o último sobrevivente da final de 1930. Nascido em 05/02/1910, faleceu seis meses depois de comemorar 100 anos, em 30/08/2010. Ele admitiu, muitos anos depois, que seu time sentiu medo na decisão de 1930. “No vestiário, no intervalo (quando a Argentina ganhava por 2 a 1), escutei coisas raras: ‘Se ganhamos aqui, nos matam’, disse um dos meus companheiros. ‘El Conejo’ Scopelli não queria jogar, tinha medo. E outros também”, relatou Varallo à revista El Gráfico em 1995.
Cumprimentos iniciais entre os capitães José Nasazzi e Manuel Ferreira. (Imagem: Popperfoto / Getty Images / FIFA)
Dez navios deveriam levar milhares de torcedores argentinos através do Rio da Prata, de Buenos Aires até Montevidéu, para assistir à final. Mas, por causa de uma pesada neblina, oito embarcações não conseguiram partir a tempo. Apenas cerca de 3.000 torcedores chegaram ao estádio, mas apenas quando o segundo tempo já estava em andamento. Eles chegavam aos gritos: “Victoria o muerte!” Contam alguns relatos que todos os argentinos que desembarcavam das barcas do rio da Prata eram revistados, e que a polícia chegou a encontrar gente armada.
A final foi apitada pelo árbitro belga Langenus. Ele era chefe de gabinete do governador da província de Antuérpia e veio à Montevidéu com uma dupla função: foi também o jornalista correspondente da revista alemã “Kicker“; após as partidas em que atuava, ele passava a crônica de cada jogo à revista por telefone. Langenus tinha 39 anos na época e um porte físico avantajado, com quase 1,90 m de altura. Temendo o sangue quente dos latinos, ele impôs três condições para arbitrar a tensa decisão: que fosse protegido por cem policiais, que a FIFA lhe fizesse um seguro de vida e que o navio “Duílio” tivesse a partida atrasada em duas horas para ele sair do estádio direto para embarcar rumo à Europa. Entretanto, a forte neblina adiou a viagem para a manhã seguinte. Langenus ainda apitou nas Copas de 1934 e 1938, completando 84 partidas internacionais. Faleceu em 1952, aos 61 anos.
Langenus era um árbitro discreto. Apitava de terno, gravata e uma boina em tom claro. Teve trabalho antes mesmo de a bola rolar. E o problema era exatamente esse: a bola! A partida começou com 15 minutos de atraso, porque nenhuma das duas equipes queria abrir mão de usar a “sua bola”. A argentina era mais leve; a uruguaia, mais pesada. A Comissão Organizadora, com uma sabedoria salomônica, resolveu que uma bola seria usada no primeiro tempo e outra no segundo. Houve um sorteio, vencido pelos visitantes. Eles usaram sua “pelota” na primeira etapa e os anfitriões jogaram com a sua no segundo tempo.
Nos anos 1930, todas as equipes atuavam no ofensivo sistema “clássico” ou “pirâmide”, o 2-3-5.
● Nenhum lance de grande perigo havia ocorrido quando, aos 12 minutos de jogo, o uruguaio Pedro Cea recebeu uma bola na meia direita, quase na linha da grande área. Mesmo perseguido pela marcação, o craque conduziu a bola para o centro e se preparou para chutar. Mas Manco Castro foi mais esperto, percebeu que Pablo Dorado escapava livre e deu um toque para o arisco ponta direita. Dorado recebeu e, mesmo sem ângulo, chutou cruzado. A bola passou entre as pernas do goleiro Juan Botasso.
Aos 20 minutos do primeiro tempo, o meia Manuel Ferreira, capitão da Argentina, recebeu a bola perto da área uruguaia e tocou de primeira para Carlos Peucelle, que corria de frente para o gol. Com um toque rápido, Paucelle driblou a marcação de Álvaro Gestido e acertou um chute alto e forte, no canto esquerdo do goleiro Enrique Ballesteros.
Aos 38′, o centromédio argentino Luisito Monti fez um ótimo lançamento da linha de meio campo até a área uruguaia. O artilheiro Guillermo Stábile ganhou dos zagueiros na corrida e chegou antes da cobertura de Andrade, tocando a bola na saída do goleiro Ballesteros. O capitão Nasazzi reclamou aos berros que tanto Stábile quanto Ferreira estavam impedidos, mas o árbitro confirmou o gol, após consultar o bandeirinha Henry Cristophe. No intervalo, Nasazzi foi ao vestiário do juiz e chegou a rabiscar um diagrama na parede para tentar provar seu ponto de vista, inutilmente.
No fim do primeiro tempo, quando a Argentina vencia por 2 x 1, o já lesionado Varallo tomou uma entrada ríspida do uruguaio Gestido e deixou o campo se arrastando. Como não havia substituições, o jovem passou a segunda etapa só fazendo número.
Na etapa final, com a superioridade numérica e a “sua bola”, os uruguaios cresceram.
Aos 13 minutos, Héctor Scarone dominou a bola de fora da área, pela meia esquerda, marcado por dois argentinos. Ao ver a aproximação de Pedro Cea pelo centro, Scarone rolou a bola e Cea mandou para o gol de carrinho, na saída do goleiro.
Segundo gol uruguaio, marcado por Pedro Cea. (Imagem: Popperfoto / Getty Images / FIFA)
Aos 23′, o ponta esquerda Santos Iriarte se deslocou para o meio, recebeu a bola de Ernesto Mascheroni e acertou um chute fortíssimo, da intermediária, que acertou o ângulo direito de Botasso.
A Argentina pressionava, chegou a mandar uma bola na trave e o gol de empate parecia questão de tempo. Aos 40′, Andrade salvou um gol certo dos argentinos, tirando de carrinho um chute de Francisco Varallo, quase em cima da linha de gol.
Mas, a dois minutos do fim, o Uruguai foi letal. Pelo lado direito, perto do bico da área, Dorado ergueu a bola na pequena área. Manco Castro subiu nas costas de Della Torre e cabeceou. A bola foi no meio do gol, rente à trave, encobrindo o goleiro Botasso. Castro tinha 1,69 m e era 10 cm mais baixo que o adversário, mas, como havia atuado no futebol argentino, sabia que Della Torre não tinha boa impulsão. Foi o gol que fechou o placar.
Comemoração dos uruguaios, campeões da primeira Copa do Mundo de futebol. (Imagem: Bob Thomas / Popperfoto / Getty Images / FIFA)
● Héctor Castro era conhecido como “Manco” por não ter a mão direita. Quando era criança, ele trabalhava como auxiliar de carpinteiro e perdeu a mão em um acidente com uma serra elétrica. Era um jogador comum. Embora fosse regular, não tinha o brilho dos atacantes da época, como os próprios craques uruguaios Héctor Scarone, Pedro Petrone, Peregrino Anselmo e Pedro Cea. Embora atuasse pela “Celeste Olímpica” desde 1924, nada fazia crer que ele seria o grande personagem da final da primeira Copa do Mundo. Mesmo na reserva, Castro participou de dois jogos e fez os dois gols mais importantes de seu país na Copa: o da vitória por 1 x 0 sobre o Peru na estreia e o último gol da final, que assegurou o título. No dia da final, ele recebeu um telefonema anônimo, que dizia que se o Uruguai perdesse, ele receberia 50 mil pesos; se ele ganhasse, não veria o pôr do sol outra vez. Ele não seria titular, mas uma lesão de Alselmo abriu espaço para que Castro não aceitasse as ameaças, brilhasse e fizesse o gol do título da primeira Copa do Mundo de futebol.
Manco Castro foi o herói na final e José Leandro Andrade era a “Maravilha Negra“. Mas, sem dúvidas, o astro da Copa e de toda aquela geração uruguaia era Héctor Scarone, “El Mago“. Ele foi o melhor jogador do mundo no seu tempo, liderando a “Celeste” nos títulos olímpicos (1924 e 1928) e mundial (1930).
A Copa do Mundo de 1930 foi a única na história que não registrou nenhum empate. Foram marcados 70 gols em 18 partidas (média de 3,9). A Argentina teve o melhor ataque, com 18 gols marcados; o Uruguai terminou com a melhor defesa, sofrendo apenas três gols.
O centroavante argentino Guillermo Stábile foi o artilheiro do Mundial com oito gols em quatro partidas. Ele se tornou o primeiro jogador a marcar gols em todas as partidas em que disputou. Estreou por sua seleção no segundo jogo da Argentina na Copa, contra o México. Acabou anotando três gols (“hat trick“) e conquistou a vaga de titular para o restante da competição. Era conhecido como “El Infiltrador“, pela facilidade com que se infiltrava nas defesas adversárias. Sua velocidade era proveniente de sua experiência no atletismo, pois fazia os 100 m rasos em cerca de 11 segundos.
Ao contrário do que se tornaria tradição a partir da Copa seguinte, a taça não foi entregue ao capitão da equipe campeã no campo de jogo. Após a partida, o presidente da FIFA, Jules Rimet, a levou ao vestiário e a entregou a Raúl Jude, presidente da Associação Uruguaia de Futebol. O dia seguinte à final foi proclamado feriado no país de apenas 2 milhões de habitantes, que comemoravam freneticamente. Cada jogador campeão ganhou uma casa do governo como prêmio. Além disso, os onze vencedores foram agraciados pela FIFA com medalhas de ouro confeccionadas por Abel Lafleu, o mesmo escultor que produziu a taça.
Jules Rimet entrega a taça a Raúl Jude, presidente da AUF. (Imagem: Popperfoto / Getty Images / FIFA)
● FICHA TÉCNICA: |
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URUGUAI 4 x 2 ARGENTINA |
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Data: 30/07/1930 Horário: 14h00 locais Estádio: Centenário Público: 68.346 Cidade: Montevidéu (Uruguai) Árbitro: Jan Langenus (Bélgica) |
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URUGUAI (2-3-5): |
ARGENTINA (2-3-5): |
Enrique Ballesteros (G) |
Juan Botasso (G) |
Ernesto Mascheroni |
José Della Torre |
José Nasazzi (C) |
Fernando Paternoster |
José Leandro Andrade |
Juan Evaristo |
Lorenzo Fernández |
Luis Monti |
Álvaro Gestido |
Pedro Suárez |
Pablo Dorado |
Carlos Peucelle |
Francisco Varallo |
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Guillermo Stábile |
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Pedro Cea |
Manuel Ferreira (C) |
Santos Iriarte |
Mario Evaristo |
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Técnico: Alberto Suppici |
Técnicos: Francisco Olazar / Juan José Tramutola |
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SUPLENTES: |
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Miguel Capuccini (G) |
Ángel Bossio (G) |
Domingo Tejera |
Alberto Chividini |
Emilio Recoba |
Ramón Muttis |
Carlos Riolfo |
Rodolfo Orlandini |
Ángel Melogno |
Edmundo Piaggio |
Conduelo Píriz |
Adolfo Zumelzú |
Zoilo Saldombide |
Carlos Spadaro |
Juan Carlos Calvo |
Natalio Perinetti |
Santos Urdinarán |
Roberto Cherro |
Pedro Petrone |
Attilio Demaría |
Peregrino Anselmo |
Alejandro Scopelli |
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GOLS: |
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12′ Pablo Dorado (URU) |
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20′ Carlos Peucelle (ARG) |
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37′ Guillermo Stábile (ARG) |
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57′ Pedro Cea (URU) |
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68′ Santos Iriarte (URU) |
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89′ Héctor Castro (URU) |
(Imagem: Popperfoto / Getty Images / FIFA)
(Imagem localizada no Google)
Gols e outros momentos da partida:
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Estou fazendo uma compilação de todas as copas do mundo e achei fantástico o seu material.
Vou postar alguns dados do seu site, (incluindo o vídeo) com os devidos créditos e escrevo-lhe esse para lhes agradecer pelo brilhante trabalho. Parabéns!!
Obrigado, Humberto!
Me fale onde vai postar, que vou ter o prazer de curtir.
Estamos dissecando mais alguns jogos para publicações futuras (junho e julho).
Continue conosco!
Na verdade pelo fato da COVID19 e a impossibilidade de trabalhar, estou criando um documentário de todas as Copas para tentar vender na Internet.
Vou te mandar um exemplar gratuitamente depois..
Um detalhe por gentileza…
Os gols de 20′ Carlos Peucelle (segundo gol da Argentina) e 57′ Pedro Cea (segundo gol do Uruguai) não existem nos arquivos?
Boa noite, Humberto!
Não achei, de jeito nenhum, os gols que você perguntou.
Estou ansioso pelo seu documentário.
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