Três pontos sobre…
… 18/06/1974 – Iugoslávia 9 x 0 Zaire
(Imagem: Sem Firulas)
● Antes de falarmos sobre futebol, precisamos entender o contexto da época.
O Zaire foi o primeiro país da África subsaariana (África negra) e apenas o terceiro país de todo continente a disputar uma Copa do Mundo, após Egito em 1934 e Marrocos em 1970.
O nome do país Zaire (Zaïre, em francês) é derivado da língua portuguesa – originalmente uma má pronúncia do termo do idioma congo “nzere” ou “nzadi”, que significa “o rio que traga todos os rios”.
O país teve muitos nomes em sua história. Foi Estado Livre do Congo (1885-1908), Congo Belga (1908-1960), República do Congo (ou Congo-Léopoldville, 1964-1971) até passar a se chamar Zaire (1971-1997). Desde o fim da Primeira Guerra do Congo, em 17/05/1997, o país adotou o nome de República Democrática do Congo.
O Zaire era liderado com mão de ferro pelo ditador Mobutu Sese Seko, que, além de ter sido um dos mais poderosos e autoritários governantes da época, ficou marcado por ser um grande entusiasta do esporte e pelo uso de um gorro de pele de leopardo e uma bengala de madeira toda desenhada.
Em 1974, seu país era o centro mais importante do continente nos esportes. No fim daquele ano aconteceria na capital Kinshasa a “luta do século” (“The rumble in the jungle” – “A luta na floresta”) no boxe entre Muhammad Ali e George Foreman. No futebol africano, o país também dava as cartas. O AS Vita Club foi o campeão da Copa Africana dos Campeões (atual Liga dos Campeões da CAF) de 1973. No início de 1974, a seleção conquistou segundo título da Copa Africana das Nações (o primeiro e único com o nome de Zaire).
(Imagem: Goal)
Empolgado, o presidente prometeu carros, casas e férias no exterior para os jogadores caso eles conseguissem a única vaga do continente para a Copa do Mundo de 1974. Nas eliminatórias, os “Leopardos” justificaram a supremacia continental. Na primeira fase, eliminou Togo por 4 x 0 no placar agregado. Na segunda fase, precisou do jogo extra para passar por Camarões (2 x 0). Na terceira fase, bateu Gana (4 x 2 ao todo). No triangular final, venceu todas as partidas diante de Zâmbia e Marrocos. O artilheiro foi Uba Kembo com seis gols.
O técnico dos Leopardos era o ex-goleiro iugoslavo Blagoje Vidinić, campeão olímpico pelo seu país em 1960. Ele havia sido o treinador do Marrocos na Copa de 1970. Vidinić era o responsável por treinar uma equipe inteiramente formada por jogadores que atuavam no próprio país – uma nação subdesenvolvida em um regime ditatorial.
Mas o Zaire tinha a melhor preparação possível: um técnico estrangeiro com experiência em Copa, treinamento adequado, promessas de premiações felpudas, além um uniforme que entraria para a história pela sua peculiaridade. A camisa usada pela seleção na competição quebrou todos os padrões da época, ao estampar a figura de um leopardo dentro de um círculo com a inscrição “Leopards” e o nome “Zaïre” logo abaixo, no centro da camisa.
Os principais destaques do time eram o goleiro Kazadi (melhor arqueiro da história do país), o zagueiro Bwanga (melhor jogador da África em 1973 e eleito pela IFFHS o melhor jogador zairense em todos os tempos – primo do goleiro Kazadi), o meia Ndaye (autor de nove gols na CAN de 1974) e o atacante Mayanga (apelidado de “brasileiro” pela sua habilidade).
Mas ainda era muito pouco para encarar as tarimbadas seleções do Grupo 2 do Mundial: Escócia, Iugoslávia e o tricampeão Brasil.
O Zaire até começou jogando bem contra a Escócia, mas acabou perdendo por 2 x 0. Após essa partida, os jogadores descobriram que haviam sido enganados. Os dirigentes do país embolsaram o dinheiro destinado à seleção e comunicaram que os prêmios não seriam mais pagos. Indignados e furiosos, os jogadores ameaçaram a entrar em greve. Apesar disso, a equipe entrou em campo para a segunda partida, diante dos iugoslavos. Mas seria melhor nem ter entrado.
(Imagem: China Daily)
● A Iugoslávia voltava a disputar uma Copa do Mundo depois de 12 anos. A última havia sido a ótima participação em 1962, no Chile, quando terminou em 4º lugar.
Em um grupo com Brasil, Escócia e Zaire, teoricamente os iugoslavos tinham boa chance de êxito.
Os Plavi (“azuis”, em sérvio) tinham bons jogadores, especialmente do meio para frente, como Dušan Bajević, Ivica Šurjak, Ilija Petković e, principalmente, Dragan Džajić.
E começou bem, empatando sem gols com o Brasil de Zagallo, que vinha de seis vitórias consecutivas em Mundiais e o título incontestável de 1970.
A segunda partida da Iugoslávia seria contra o Zaire.
O técnico Miljan Miljanić montou seu time no sistema 4-3-3 ofensivo, com muita chegada dos meias ao ataque.
Também iugoslavo, Blagoje Vidinić escalou o Zaire a campo em um 4-3-3 na teoria. Na prática, só se via a desorganização e o desespero em campo.
● As teorias da conspiração colocam o técnico Blagoje Vidinić como um dos principais vilões naquela noite. Estranhamente, o treinador deixou Mayanga no banco. O atacante tinha sido o melhor em campo diante dos escoceses. Uma das versões é que ele enfraqueceu seu time de forma deliberada para facilitar mais ainda para seu país de origem. Em outra, ele simplesmente obedeceu uma ordem expressa do presidente Mobutu exigindo a escalação de reservas que eram apoiadores do regime.
De qualquer forma, os iugoslavos precisavam vencer e trataram de liquidar logo o jogo. Os gols foram saindo com extrema facilidade.
Aos oito minutos jogados, Džajić avançou pelo lado esquerdo e cruzou para a pequena área. Bajević subiu e marcou de cabeça. 1 a 0.
Aos 14′, Džajić cobrou falta da entrada da área e acertou o ângulo esquerdo do goleiro. 2 a 0.
Quatro minutos depois, Jovan Aćimović lançou Šurjak, que recebeu dentro da área, girou e bateu cruzado de perna esquerda. 3 a 0.
Inexplicavelmente, aos 21′, o técnico Vidinić trocou o bom goleiro titular Kazadi pelo reserva Tubilandu, de apenas 1,68 m. Se seu time estava sofrendo um gol atrás do outro justamente pela deficiência defensiva na bola aérea, não tem sentido algum colocar um goleiro mais baixo, com menos qualidade e experiência do que o titular. Foi a primeira vez na história das Copas que um treinador trocou os goleiros sem ter havido uma contusão.
Tubilandu não havia nem se posicionado no gol ainda e já sofreu o quarto gol. Em uma cobrança de falta da direita, Ivan Buljan cruzou para a área. Josip Katalinski dominou livre na pequena área e bateu no alto. A defesa do Zaire parou pedindo um impedimento que não existia. 4 a 0.
Na reclamação após o gol, o lateral direito Mwepu tentou agredir com um chute o árbitro Omar Delgado. O juiz colombiano até conseguiu evitar o golpe, mas se confundiu quanto ao agressor e acabou expulsando outro jogador, Ndaye (o melhor do time). Mesmo Mwepu assumindo a responsabilidade pela agressão, Delgado manteve a expulsão equivocada.
(Imagem: Pinterest)
Perdendo por quatro gols e com um jogador a menos desde os 22 minutos, o Zaire se perdeu de vez.
Os iugoslavos impuseram ao reserva Tubilandu uma tarde ainda mais cruel do que já tinham imposto a Kazadi.
Aos 30′, Petković avançou pela direita e cruzou. Bajević subiu e cabeceou a direita, da linha da pequena área. 5 a 0.
Cinco minutos depois, Katalinski disputou com o goleiro pelo alto e a bola sobrou para Vladislav Bogićević, que tocou de cabeça para o gol. 6 a 0.
Só no intervalo, após estar perdendo por 6 x 0, que Vidinić mandou Mayanga a campo. Ele pouco conseguiu tocar na bola.
Aos 16′ do segundo tempo, Branko Oblak cobrou falta. Tubilandu tentou segurar, falhou feio e a bola entrou no canto direito. 7 a 0.
Após o sétimo gol, o responsável pelo controle do placar em Gelsenkirchen entrou em pânico, pois não havia espaço para exibir o nome do autor dos gols seguintes, caso houvessem. Assim, ele foi prático ao informar o placar e o número da camisa de quem fez o oitavo e o nono gol.
(Imagem: Twitter @SerbianFooty)
Quatro minutos depois, Aćimović foi desarmado na meia lua. A bola ficou com Petković, que dominou e bateu no canto. 8 a 0.
O placar foi fechado aos 36′. Džajić cruzou da esquerda e Aćimović escorou de cabeça para Bajević. Na pequena área, o camisa 19 chutou de primeira e marcou seu “hat trick”. 9 a 0.
O apito final do árbitro soou mais como misericórdia para os massacrados Leopardos.
“Estávamos estáticos em campo. Os zagueiros estavam nervosos, nossa marcação não encaixava e não conseguimos criar. Não tivemos oportunidades claras. Mostramos realmente o nosso amadorismo.” ― Mayanga Maku
(Imagem: Alamy)
● Esse placar igualou a maior goleada de todas as Copas até então, que havia sido Hungria 9 x 0 Coreia do Sul, em 1954. E só seria superado em 1982, quando a Hungria venceu El Salvador por 10 a 1. A bem da verdade, poderia ter sido mais humilhante se os iugoslavos não tivessem desacelerado no segundo tempo.
Na última rodada, a Iugoslávia empatou com a Escócia por 1 x 1 e se classificou em primeiro lugar do Grupo 2, deixando o Brasil em segundo no saldo de gols.
A segunda fase da Copa de 1974 não era composta por oitavas ou quartas de final em partidas eliminatórias (o famoso mata-mata), mas sim uma nova fase de grupos, que classificaria o vencedor para a final. Nessa fase, pelo Grupo B, a Iugoslávia acabou perdendo as três partidas: 2 x 0 para a Alemanha Ocidental, 2 x 1 para a Polônia e 2 x 1 para a Suécia. Acabou terminando a competição em 7º lugar.
(Imagem: Alamy)
● Ainda no vestiário, os jogadores receberam a visita de emissários do ditador Mobutu com uma ameaça: se sofressem quatro ou mais gols diante do Brasil, não voltariam vivos para casa. Felizmente, para os Leopardos, a derrota foi “apenas” por 3 a 0. O Zaire encerrou sua única participação na história das Copas com três derrotas em três jogos, nenhum gol marcado e 14 gols sofridos.
No retorno da delegação ao ao país africano, não havia ninguém para recebê-los no aeroporto de Kinshasa. A maioria dos atletas nunca mais voltaria à seleção. Nenhuma premiação prometida foi paga aos jogadores, que foram impedidos de jogar em clubes do exterior. Quase todos viveram o resto de suas vidas na pobreza. Pouco depois o governo parou de financiar o futebol do país. O Zaire nunca mais se classificou a uma Copa do Mundo.
Em nível de clubes, o país até tem certo destaque com o TP Mazembe, que é o segundo maior campeão da Champions Africana com cinco títulos e o vice-campeonato do Mundial de Clubes de 2010, quando eliminou o Internacional na semifinal.
Curiosamente, Rio Mavuba, jogador que defendeu a França na Copa de 2014, é filho de um dos jogadores daquela seleção do Zaire, Mafuila Mavuba, volante reserva. Filho de mãe angolana, Rio Mavuba era originalmente apátrida, pois nasceu em um bote em pleno alto mar, em águas internacionais, quando seus pais buscavam refúgio da Guerra Civil Angolana.
No histórico 7 x 1 da Alemanha sobre o Brasil, em 2014, a Seleção brasileira bateu um recorde negativo que pertencia ao Zaire em 1974. Os Leopardos haviam sofrido cinco gols nos primeiros 30 minutos. Os Canarinhos demoraram 29 minutos para sofrer o quinto gol.
(Imagem: Getty Images / FIFA)
● FICHA TÉCNICA: |
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IUGOSLÁVIA 9 x 0 ZAIRE |
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Data: 18/06/1974 Horário: 19h30 locais Estádio: Parkstadion Público: 31.700 Cidade: Gelsenkirchen (Alemanha Ocidental) Árbitro: Omar Delgado Gómez (Colômbia) |
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IUGOSLÁVIA (4-3-3): |
ZAIRE (4-3-3): |
1 Enver Marić (G) |
1 Kazadi Mwamba (G) |
2 Ivan Buljan |
2 Mwepu Ilunga |
5 Josip Katalinski |
4 Bwanga Tshimen |
6 Vladislav Bogićević |
5 Lobilo Boba |
3 Enver Hadžiabdić |
3 Mwanza Mukombo |
10 Jovan Aćimović |
6 Kilasu Massamba |
8 Branko Oblak |
8 Mana Mamuwene |
9 Ivica Šurjak |
13 Ndaye Mulamba |
7 Ilija Petković |
9 Kembo Uba Kembo |
19 Dušan Bajević |
10 Kidumu Mantantu (C) |
11 Dragan Džajić (C) |
21 Kakoko Etepé |
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Técnico: Miljan Miljanić |
Técnico: Blagoje Vidinić |
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SUPLENTES: |
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21 Ognjen Petrović (G) |
12 Tubilandu Ndimbi (G) |
22 Rizah Mešković (G) |
22 Kalambay Otepa (G) |
13 Miroslav Pavlović |
16 Mwape Mialo |
14 Luka Peruzović |
11 Kabasu Babo |
15 Kiril Dojčinovski |
18 Mavuba Mafuila |
4 Dražen Mužinić |
15 Kibonge Mafu |
16 Franjo Vladić |
17 Kafula Ngoie |
20 Vladimir Petrović |
7 Kamunda Tshinabu |
12 Jurica Jerković |
19 Mbungu Ekofa |
17 Danilo Popivoda |
20 Jean Kalala N’Tumba |
18 Stanislav Karasi |
14 Mayanga Maku |
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GOLS: |
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8′ Dušan Bajević (IUG) |
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14′ Dragan Džajić (IUG) |
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18′ Ivica Šurjak (IUG) |
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22′ Josip Katalinski (IUG) |
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30′ Dušan Bajević (IUG) |
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35′ Vladislav Bogićević (IUG) |
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61′ Branko Oblak (IUG) |
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65′ Ilija Petković (IUG) |
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81′ Dušan Bajević (IUG) |
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CARTÃO AMARELO: 54′ Enver Hadžiabdić (IUG) |
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CARTÃO VERMELHO: 22′ Ndaye Mulamba (ZAI) |
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SUBSTITUIÇÕES: |
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21′ Kazadi Mwamba (ZAI) ↓ |
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Tubilandu Ndimbi (ZAI) ↑ |
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INTERVALO Kakoko Etepé (ZAI) ↓ |
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Mayanga Maku (ZAI) ↑ |
● Clique aqui para ver todos os gols da partida em português (Rede Globo):
https://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/video/em-1974-iugoslavia-goleia-o-zaire-por-9-a-0-na-copa-do-mundo-3485091.ghtml