… 29/05/1919 – Brasil 1 x 0 Uruguai

Três pontos sobre…
… 29/05/1919 – Brasil 1 x 0 Uruguai


Em pé: Píndaro, Sérgio, Marcos, Fortes, Bianco e Amílcar. Agachados: Millon, Neco, Friedenreich, Heitor e Arnaldo. (Imagem: O Malho)

● O Brasil foi a sede da terceira edição do Campeonato Sul-Americano de futebol (atual Copa América). Esse foi o ponto chave de inclusão da massa no futebol brasileiro. E um simples esporte, um relés jogo de bola mudou para sempre o jeito de ser do brasileiro, representando a inclusão do povão em uma modalidade antes reservada às elites. E, desde então, os governantes perceberam o poder do futebol e passaram a capitalizar sobre suas vitórias. Era a já centenária política de “pão e circo”.

Antes de tudo, é necessário tentar compreender um pouco de como era o Brasil cem anos atrás. Era um país bem menos igualitário, em que o poder da elite predominava sobre as massas ainda mais do que é hoje em dia. Uma nação sem identidade, que era conduzida com mãos de ferro por barões e coronéis. A Lei Áurea havia sido assinada há pouco mais de trinta anos. Os negros, mestiços e pobres não tinham “direito” de praticar o futebol.

Até o fim da década de 1910, para praticar o esporte sem ser malvisto era preciso estudar ou trabalhar. Via de regra, os treinos aconteciam após o expediente ou em dias de folga, tendo como objetivo se preparar para o jogo do final de semana. Os “atletas” geralmente trabalhavam em firmas estrangeiras ou faziam faculdade. Nunca se imaginava que alguém poderia ganhar a vida com isso, receber exclusivamente para praticar futebol.

Pouco a pouco, a paixão pela bola foi se espalhando pelas periferias e atingiu o grande público. E o povão foi levando jeito para a coisa. Com o tempo, os clubes elitistas acabaram abrindo as portas para os brancos pobres e, depois, para os mulatos e negros. O importante já passava a ser fortalecer o time. Era o início das rivalidades locais, hoje tão enraizadas.


(Imagem: CBF)

● O Campeonato Sul-Americano de 1919 estava marcado para acontecer em 1918, no Rio de Janeiro. Mas uma devastadora epidemia de gripe espanhola obrigou o adiamento da competição. O vírus foi responsável por milhares de mortes no Brasil e cerca de 40 milhões em todo o mundo. Escolas e comércio foram fechados para diminuir o contágio. Relatos da época contam que os caminhões da Saúde Pública percorriam as ruas das cidades para recolher corpos deixados às portas das casas. Mas, felizmente, a partir de 1919, o Brasil foi totalmente infestado por outro vírus: o do futebol.

Situado no Rio de Janeiro, então capital federal, o estádio das Laranjeiras, propriedade do Fluminense FC, foi construído para ser palco do Campeonato Sul-Americano. Era o maior estádio da América Latina, mas pequeno diante do surpreendente interesse do público pela competição.

Foi inaugurado em 11/05/1919, na abertura do campeonato, quando o Brasil goleou o Chile por 6 x 0, com um hat-trick de Friedenreich, dois gols de Neco e um de Haroldo.

Uma semana depois, a Seleção venceu a Argentina por 3 x 1, com gols de Heitor, Amílcar e Millon.

Na última rodada, dia 26, o Brasil enfrentou o Uruguai e empatou por 2 x 2, após sair perdendo por 2 a 0. Neco fez os dois gols brasileiros.

Com isso, Brasil e Uruguai terminaram o campeonato empatados com cinco pontos (duas vitórias e um empate). Os charruas haviam vencido a Argentina por 3 a 2 e o Chile por 2 a 0. Assim, precisariam disputar um jogo desempate três dias depois.

O time uruguaio era a mesma base que havia vencido os dois primeiros Sul-Americanos e era grande favorito para vencer o terceiro. As futuras medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de 1924 e 1928, além do título da primeira Copa do Mundo, em 1930, foram frutos colhidos pelo espírito de competitividade e pela organização uruguaia desde os primórdios. E o símbolo dessa transição vitoriosa era Héctor Scarone, um jovem de 20 anos naquele longínquo 1919 e um dos veteranos em 1930.


(Imagem: CBF)

● No dia 29/05/1919, em plena quinta-feira à tarde, o Rio parou. Por ordem de Delfim Moreira, presidente da República, as repartições públicas tiveram ponto facultativo e o comércio fechou suas portas ao meio-dia. Os bancos nem abriram.

Mesmo tendo capacidade para “apenas” 18 mil expectadores, o público oficial da decisão foi de mais de 28 mil – uma superlotação que se tornaria costumeira. Mas o desejo de assistir à final era tão grande, que quem não conseguiu adquirir seu ingresso escalou o morro vizinho e acompanhou a partida de lá mesmo. Naquele momento, começou-se algo que se tornaria também a marca do nosso povo: o “jeitinho brasileiro”.

Outra coisa marcante também e, até então inédita, foi a mistura do povo simples com os endinheirados. Agora, choravam e sorriam juntos, se abraçavam… começando a quebrar preconceitos. Era a democratização do futebol. E, paradoxalmente, o futebol sendo usado para democratizar. O esporte elitizado pelos ricos e brancos, passava a fazer parte da vida dos menos favorecidos. E todos unidos em dois objetivos: torcer para seu país e ser hostil aos rivais. O brasileiro queria a taça a qualquer custo para mostrar seu valor – nem que fosse através do futebol.

Os cavalheiros vestiam terno com gravata (na maioria borboleta) e chapéus – que, na comemoração dos gols, voavam das arquibancadas. As damas usavam vestidos bordados de seda e luvas, que no auge da aflição eram tiradas e torcidas a cada perigo de gol. Vem daí a origem do verbo “torcer” no esporte.

Houve uma espécie de catarse coletiva que envolveu toda a população. No decorrer das partidas, os ânimos ficavam exaltados e o futebol ganhava contornos de paixão. Na tentativa de evitar maiores problemas, a CBD (Confederação Brasileira de Desportos, que depois se tornaria a CBF) pediu para que o policiamento no estádio fosse reforçado, evitando invasões ao campo.


Tanto Brasil quanto Uruguai jogavam no tradicional sistema tático clássico, 2-3-5 ou pirâmide.

● O início da partida foi um verdadeiro jogo de xadrez. A preocupação inicial das duas equipes era não sofrer gols. Tanto, que nenhuma grande chance foi criada no primeiro tempo e os goleiros foram meros expectadores.

Mas tudo mudou na segunda etapa. Com o cansaço dos atletas, as oportunidades começaram a surgir. Romano chuta forte e Marcos espalma para a linha de fundo. Friedenreich responde e obriga Saporiti a defender. Desde então, os goleiros não mais pararam de trabalhar. Heitor e Neco obrigaram o arqueiro uruguaio a fazer grandes defesas. Marcos também foi testado em um chute de primeira de Morán.

O passar do tempo causava uma angústia enorme na torcida, como nunca antes. A incerteza reinava e o jogo era lá e cá. Fried e Heitor tentaram, mas não conseguiram acabar com essa agonia. Isabelino Gradín, o único negro do Uruguai, melhor jogador do time e principal responsável pelas conquistas anteriores, chutou firme e Marcos pegou.

Como o empate prevaleceu ao fim dos 90 minutos, eram necessárias sucessivas prorrogações até que houvesse um vencedor. Mas os jogadores estavam destruídos fisicamente. Se atualmente os atletas sofrem com o tempo extra, imagine há cem anos, quando a preparação física era ainda incipiente. E ainda não eram permitidas as substituições. Agora, a vitória era mais uma questão de honra patriótica para ambos os lados.

O duelo continuou. Scarone passou pela marcação e chutou forte no canto. Em um voo espetacular, Marcos Carneiro de Mendonça conseguiu espalmar pela linha de fundo. Em suas memórias, o legendário goleiro afirmaria: “Foi a defesa mais difícil e importante da minha vida”. E talvez seja a mais fundamental de todo o futebol brasileiro. Sem ela, não haveria mais trinta extenuantes minutos de um novo tempo extra.


(Imagem: CBF)

● E, depois de mais de duas horas de jogo, o tão esperado grito de gol saiu da garganta logo aos três minutos da segunda prorrogação. Neco avançou pela direita marcado por Foglino, foi até a linha de fundo e cruzou. Heitor chutou em cima de Saporiti, que socou a bola para fora da área. Mas Friedenreich acompanhava a jogada e bateu de primeira, à meia altura, no canto do goleiro celeste.

O recém construído estádio das Laranjeiras quase veio abaixo. Os expectadores foram ao delírio, gritando, se abraçando e jogando seus chapéus para o alto. Os jogadores se abraçavam e beijavam Fried.

A vantagem no placar deu ânimo aos brasileiros, que permaneciam no ataque para tentar matar o jogo. Mas ele ainda não tinha acabado e o adversário era o Uruguai, que jamais se entrega em nenhuma peleja. Ainda restavam metade do primeiro tempo e todo o segundo.

Nos minutos finais, os uruguaios não se conformavam com a derrota e estavam irritados. Quase houve uma briga. O início, segundo o jornal “O Imparcial”, foi a provocação de um torcedor. “Scarone comete um foul na linha de fundo, do lado das gerais. Um popular diz-lhe qualquer coisa que não pudemos ouvir. O jogador uruguaio parte para tentar agredir o mesmo popular. A polícia intervém. Scarone e Gradim ameaçam deixar o campo. Os outros jogadores orientais não concordam e eles são demovidos dessa idéia.”

No recomeço, a pressão uruguaia aumenta e Marcos defende um último chute de Gradín. Já eram 17h25 e não restava mais tempo. Já estava começando a escurecer no Rio de Janeiro. E, enfim, o árbitro argentino Juan Pedro Barbera apita o fim da partida. O estádio é imediatamente invadido, se transformando em um grande palco de comemoração, em uma celebração que se arrastaria por toda a capital federal. Os mais festejados eram Arthur Friedenreich, autor do gol, e Marcos Carneiro de Mendonça, responsável por defesas milagrosas.


(Imagem: CBF)

● Um inédito e estranho orgulho de ser brasileiro se embrenhava por toda aquela gente. E tudo isso por um simples jogo de futebol. Aos poucos os torcedores foram deixando o estádio e contando o resultado do jogo a quem encontrasse. A boa notícia foi se espalhando pelos bondes, em frente às redações dos jornais, em toda a cidade. Em alguns dias, as filmagens do duelo estavam nas salas de projeção das principais cidades brasileiras. Todos queriam ver seu país vencedor.

A bola do jogo, com a assinatura de todos os jogadores, foi guardada numa redoma de vidro da antiga sede da CBD, como um troféu. A chuteira de Friedenreich, ainda suja de lama, ficou em exposição pública na vitrine de uma loja de luxo na rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro.

Para comemorar a conquista, o então jovem instrumentista Pixinguinha (apaixonado por futebol) e seu parceiro, o flautista Benedito Lacerda, compuseram a melodia do chorinho “1 a 0”. Só em 1993, Nelson Angelo escreveu uma letra para essa música, sobre futebol, mas sem nenhuma referência ao jogo que a inspirou.

Marcos Carneiro de Mendonça foi também o primeiro goleiro da Seleção Brasileira. É o mais jovem a defender o gol do Brasil, aos 19 anos. Pelo escrete nacional, foram dez jogos e 15 gols sofridos (uma bela média para a época). Lenda do Fluminense, o arqueiro era conhecido como “Fita Roxa”. Ele usava um uniforme estiloso, todo branco e com a referida fita roxa como um cinto, para prender o calção. Era considerado galã e arrancava suspiros do público feminino. Ao encerrar a carreira, foi historiador e presidente do Fluminense. Era pai de Bárbara Heliodora Carneiro de Mendonça, professora, ensaísta, tradutora e crítica de teatro brasileira, uma especialista e grande conhecedora da obra de William Shakespeare.

Filho de um comerciante alemão e de uma lavadeira negra brasileira, Arthur Friedenreich foi a primeira grande estrela do futebol brasileiro em tempos de amadorismo. Autor do gol do título, ele foi humilde ao comentá-lo: “O gol foi do Neco, que fez uma jogada belíssima. Eu apenas tive o trabalho de chutá-la. Nada mais.” Ao fim da partida, o centroavante recebeu um pergaminho das mãos do capitão uruguaio com os dizeres: “Nós, os componentes da seleção uruguaia, concedemos ao senhor Arthur Friedenreich, o título de El Tigre por ser o mais perfeito centroavante do campeonato Sul-Americano”. Friedenreich mereceu e chorou de emoção.

Mas Fried quase ficou fora da grande decisão. Na noite anterior, ele recebeu uma homenagem em uma casa no Catete chamada “Flor do Abacate”. Ele pulou o muro do alojamento e foi para o evento mesmo com a proibição pela comissão técnica. Houve uma crise no vestiário, mas não a ponto de barrar o astro da partida.

Nada mais genuíno do que um mulato marcar o gol decisivo do primeiro título da história de nosso país. Fried não era branco e nem era negro: era o encontro das duas raças que simboliza a junção de culturas do país até os dias de hoje. Ele foi o responsável pela primeira grande alegria do futebol brasileiro.

E o Brasil se rendeu definitivamente às emoções do futebol, passando a ter seu próprio estilo de praticar o esporte: pouca disposição tática e física, mas com muito “molejo, picardia e a dança da capoeira” (disse certa vez Gilberto Freyre). O Brasil foi se tornando o país do futebol. As derrotas nos moldaram como “vira-latas” e as vitórias nos “assoberbam” até hoje. Para o brasileiro, o futebol não é caso de vida ou morte: é muito mais do que isso (como dizia Bill Shankly). O futebol passou a ser o termômetro da autoestima do povo. O futebol brasileiro passou a ser um patrimônio do povo.


(Imagem: CBF)

 

FICHA TÉCNICA:

 

BRASIL 1 x 0 URUGUAI

 

Data: 29/05/1919

Horário: 14h00 locais

Estádio: Laranjeiras

Público: 28.000

Cidade: Rio de Janeiro (Brasil)

Árbitro: Juan Pedro Barbera (Argentina)

 

BRASIL (2-3-5):

URUGUAI (2-3-5):

Marcos Carneiro de Mendonça (G)

Cayetano Saporiti (G)

Píndaro de Carvalho

Manuel Varela

Bianco Spartaco

Alfredo Foglino

Sérgio Pires

Rogelio Naguil

Amílcar Barbuy

Alfredo Zibechi

Fortes

José Vanzzino

Millon

José Pérez

Neco

Héctor Scarone

Arthur Friedenreich

Ángel Romano

Heitor Domingues

Isabelino Gradín

Arnaldo da Silveira (C)

Rodolfo Marán

 

Técnico: Ground Committeé (comissão técnica formada por: Arnaldo da Silveira [capitão], Amílcar Barbuy, Mário Pollo, Affonso de Castro e Ferreira Vianna Netto). Em alguns registros, consta simplesmente: Haroldo Domingues

Técnico: Severino
Castillo

 

SUPLENTES:

 

 

Dyonísio (G)

Roberto Chery (G)

Primo Zanotta (G)

José Benincasa

Palamone

Juan Delgado

Laís

Ricardo Medina

Picagli

Omar Pérez

Martins

Pascual Somma

Galo

Carlos Scarone

Luiz Menezes

 

Carregal

 

Arlindo

 

Haroldo
Domingues

 

 

GOL: 123′ Arthur Friedenreich (BRA)

Vídeo sobre a partida:

Veja mais fotos:


(Imagem: CBF)


(Imagem: CBF)


(Imagem: CBF)


(Imagem: CBF)


(Imagem: CBF)


(Imagem: CBF)

Algumas matérias de jornais sobre o triunfo brasileiro:


O Imparcial (Fonte: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx)


O Imparcial (Fonte: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx)


O Paiz (Fonte: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx)


O Paiz (Fonte: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx)


Jornal do Brazil (Fonte: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx)


Gazeta de Notícias (Fonte: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx)


A Razão (Fonte: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx)


Correio da Manhã (Fonte: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx)

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