… 04/07/1954 – Alemanha Ocidental 3 x 2 Hungria

Três pontos sobre…
… 04/07/1954 – Alemanha Ocidental 3 x 2 Hungria

“O milagre de Berna”


Jogadores alemães comemoram o surpreendente título mundial (Imagem: Globo Esporte)

● Todos os 62.500 expectadores presentes no estádio Wankdorf, em Berna, estavam ansiosos para assistir mais um show da fantástica seleção da Hungria. A “Aranycsapat” (“Equipe de Ouro“, no idioma húngaro) estava invicta a 36 partidas (32 vitórias e 4 empates) e já tinha massacrado a própria Alemanha Ocidental na primeira fase da Copa por 8 a 3. Mas tudo era diferente agora. A começar pela própria escalação do time alemão.

O técnico Sepp Herberger era uma verdadeira raposa. Ele assistiu ao show no amistoso contra a Inglaterra em 1953 (6 a 3 para os magiares, na primeira derrota inglesa em casa para uma seleção não britânica). Não só assistiu, como gravou a partida e a estudou minuciosamente a forma de jogar do adversário. Ele sabia muito bem como eles jogavam, mas os húngaros nada sabiam sobre o time alemão. Principalmente porque na derrota na primeira fase, Herberger escalou apenas seis dos seus titulares, sendo que dois jogaram fora de posição.

Outra diferença era o capitão Ferenc Puskás, que era dúvida até a véspera, devido a uma contusão causada por uma entrada criminosa do zagueiro alemão Werner Liebrich, no já citado jogo da primeira fase. Desde então, Puskás não tinha entrado em campo e ficou apenas fazendo tratamento (hidroterapia, eletrochoques, …) para se recuperar para uma eventual decisão. Ela chegou e Puskás jogou. Mesmo estando com apenas 50% de seu potencial, ele era o melhor jogador do mundo. Além do mais, desde sua saída do time, Kocsis tinha sempre dois marcadores em sua marcação. Com a volta de Puskás, o camisa 8 poderia ter mais espaço para continuar brilhando como fez a Copa toda. Kocsis foi o artilheiro do torneio, com 11 gols (era o recorde até ser batido por Just Fontaine em 1958).

A Alemanha vinha de partidas relativamente fáceis (7 a 2 na Turquia, 2 a 0 na Iugoslávia e 6 a 1 na Áustria), enquanto A Hungria vinha de uma verdadeira batalha contra o Brasil nas quartas de final. Na semifinal, os magiares precisaram da prorrogação para impor aos uruguaios sua primeira derrota na história das Copas. O desgaste físico era claramente maior do lado húngaro.

Na ponta direita, László Budai ainda estava completamente esgotado pelo jogo contra os uruguaios e József Tóth estava contundido desde o jogo contra o Brasil. Assim, o comandante técnico Gusztáv Sebes (o técnico em campo era Gyula Mandi) escalou Zoltán Czibor na direita. Apesar de Czibor nunca ter ocupado antes essa posição na seleção, já tinha jogado assim no início de carreira, no Komárom. A estratégia de Sebes era usar a velocidade de seu camisa 11 contra o lento zagueiro esquerdo alemão Werner Kohlmeyer.

Os húngaros dormiram muito mal na noite que antecedeu à decisão. Em frente ao hotel onde estavam hospedados, ocorreu o campeonato nacional de fanfarras da Suíça, com desfile até as duas horas da madrugada. Após uma pausa, as fanfarras voltaram a tocar logo após o almoço do domingo, justamente na hora que os jogadores gostam de tirar um cochilo.

Para piorar as coisas, a multidão nos arredores do estádio dificultou a chegada da delegação. O ônibus alemão tinha passado pouco antes e quando o veículo que levava a Hungria se aproximou, não teve sua entrada autorizada pela polícia suíça. Os campeões olímpicos tiveram que estacionar do lado de fora e andar no meio da multidão, já de desgastando física e mentalmente.

Trinta mil alemães que haviam atravessado a fronteira suíça empurravam sua seleção. Do outro lado, dava para contar nos dedos a torcida da Hungria. Na época, devido ao rígido regime comunista, os húngaros não tinham permissão do governo para viajar para o exterior, com medo de uma deserção em massa.

A chuva não ajudou. Ela castigou o gramado e o deixou pesado, atrapalhando o toque de bola húngaro (especialmente o recém recuperado Puskás) e facilitando o jogo de força alemão. Para o capitão e cérebro da Alemanha Ocidental, Fritz Walter, o tempo nublado e úmido e a temperatura na faixa dos 20º C era uma verdadeira bênção, já que seu rendimento caía em dias de sol e calor, por ter contraído malária na juventude. Por falar nele, Fritz Walter foi paraquedista e lutou pelo exército nazista na Segunda Guerra Mundial; depois do conflito, nunca mais entrou em um avião. Sepp Herberger também trabalhou para o regime nazista.

Outro grande fator que contribuiria para o sucesso alemão foram as chuteiras com travas cambiáveis, desenvolvida por Adolf “Adi” Dassler, que havia fundado a Adidas em 1949. Ele tinha tanto prestígio com o técnico Herberger, que era uma espécie de auxiliar informal. Vendo a situação do gramado antes da decisão, Dassler pôde aparafusar travas altas nas chuteiras de seus compatriotas. Enquanto eles usavam material próprio para gramados encharcados, os húngaros escorregavam em campo.


A Alemanha Ocidental atuava no sistema WM. Diferentemente da primeira fase, dessa vez escalou seus onze melhores.


A Hungria jogou em seu incipiente 4-2-4, com o recuo do centroavante Hidegkuti para armar o jogo e o consequente recuo de Zakariás para a linha defensiva. Como Budai e József Tóth não estavam em condições de jogo, Czibor foi improvisado na ponta direita e Mihály Tóth continuou na ponta esquerda.

● Logo no primeiro minuto, a Alemanha surpreendeu e chegou ao ataque com Hans Schäfer. Os húngaros deram o troco na sequência, em um contra-ataque concluído por Sándor Kocsis e defendido pelo bom goleiro Toni Turek. Mas com o pioneiro aquecimento antes das partidas, a Hungria rapidamente abriu 2 a 0.

Aos seis minutos de jogo, Kocsis cortou por dentro e chutou em cima de Eckel. A bola sobrou na esquerda para Puskás, que ementou de primeira para o gol, sem chances para Turek.

Dois minutos depois, Kohlmeyer recuou mal para Turek, que saiu todo atrapalhado e soltou a bola. Czibor aproveitou o presente, se livrou dos dois trapalhões e mandou para o gol vazio.

Logo na sequência, a Hungria perdeu várias chances de anotar o terceiro gol. Então, o time relaxou e passou a tentar manter a bola no meio campo para cansar os alemães. Mas nada disso funcionou. A Alemanha sabia exatamente o que fazer para neutralizar as jogadas adversárias.

Aos dez minutos, Helmut Rahn dominou a bola na esquerda e chutou de longe, despretensioso. Zakariás tentou cortar, mas apenas amaciou a bola para Max Morlock, que vinha na corrida. De carrinho, ele tocou no canto direito, se antecipando ao goleiro Grosics.


Primeiro gol alemão, marcado por Max Morlock (Imagem localizada no Google)

O empate veio ainda aos 18 minutos do primeiro tempo. Fritz Walter cobrou escanteio. Hans Schäfer disputou na pequena área pelo alto Grosics, em um lance comum na época, mas que atualmente seria marcada falta clara. A bola passou pelos dois e sobrou para Rahn, que emendou de primeira para as redes, mesmo sem ângulo.

Logo em seguida, Hidegkuti passou por Karl Mai e chutou no pé da trave de Turek.


Com a marcação individual, Hidegkuti ficou preso na marcação do excelente Eckel.

Nesse momento o estrategista Sepp Herberger agiu de novo: ele recuou o experiente Fritz Walter para ajudar na saída de bola e colocou o meia defensivo Horst Eckel grudado em Hidegkuti, o cérebro e principal criador de jogadas da Hungria. Um sistema idealizado para liberar o centroavante de seu marcador caiu por terra quando o marcador foi deslocado para perto dele.

Mas ainda assim os húngaros conseguiam jogar melhor e criaram as melhores chances do segundo tempo: o próprio Hidegkuti acertou a trave esquerda, Kocsis cabeceou uma bola no travessão, Kohlmeyer salvou uma bola de Puskás em cima da linha e Turek fez uma inspirada sequência de grandes defesas.

Com inteligência, os alemães jogavam no contra-ataque, por apenas uma bola. E ela apareceu a seis minutos do fim. Schäfer ganhou a bola na intermediária, avançou e levantou para a área. Lantos cortou pelo alto e a bola rebatida caiu nos pés de Rahn. O camisa 12 driblou Lantos com a perna direita e, cercado por mais dois adversários, chutou rasteiro de perna esquerda. A bola pegou velocidade no gramado molhado e entrou no canto direito do goleiro Grosics. Helmut Rahn, o ponta direita ambidestro, era o herói da inacreditável virada alemã.

A Hungria partiu com tudo em busca do empate. Turek fez mais uma defesa magistral em um chute de Czibor.

Nos últimos momentos da partida, Puskás recebeu nas costas de Liebrich, avançou pela esquerda e bateu entre as mãos de Turek e a trave direita, empatando a partida. O árbitro inglês Bill Ling estava pronto para confirmar o gol, mas o bandeirinha galês Benjamin Griffiths assinalou impedimento, já alguns segundos depois. Pela única imagem disponível, a posição de Puskás parecia legal, mas não é possível observar o momento exato do lançamento para ele.

Uma questão a ser considerada é que os árbitros britânicos eram comumente escalados para apitar jogos daquela Hungria. Justamente os britânicos, que passaram a ter um ódio mortal pelos magiares depois das duas goleadas sofridas pela seleção inglesa (6 x 3 e 7 x 1).

A última chance de empate esteve nos ótimos pés de Czibor, mas Turek fez um novo e derradeiro milagre.

Ao fim dos noventa minutos, a Alemanha Ocidental chutou oito vezes a gol e marcou três gols; já a Hungria deu 25 chutes e marcou duas vezes, além do tento anulado.

Além da vaidade e da má sorte, a Hungria pagou também pela fragilidade defensiva. Para os padrões da época, a defesa jogava muito avançada e os jogadores da linha defensiva não eram tão qualificados quanto os demais, especialmente Gyula Lóránt e Mihály Lantos.

Para assombro geral, a Hungria perdia sua invencibilidade justamente quando não podia. A pragmática Alemanha conseguiu um verdadeiro milagre e, merecidamente, se sagrou campeã do mundo pela primeira vez.

O capitão Fritz Walter recebeu a taça das mãos do presidente da FIFA, Jules Rimet, e a entregou ao treinador Sepp Herberger. Depois, todos ouviram o hino nacional alemão de mãos dadas, com a mesma humildade de um país que começava a se reconstruir depois da derrota na Segunda Guerra Mundial.


O capitão Fritz Walter segura a taça. (Imagem: AP Photo)

● Os onze jogadores alemães que disputaram essa final nunca mais atuaram juntos.

Uma semana depois da decisão, alguns jogadores foram para uma clínica de repouso, o que levantou suspeitas de que teriam sido dopados. O então médico da delegação, Franz Logan, confessou que tinha injetado vitamina C e glicose nos atletas para prevenir contra uma gripe que poderia ser causada pela chuva na final. Mas nenhuma dessas substâncias nunca foi e nem é considerada doping. O que foi realmente provado é que os alemães jogaram “dopados” com a autoconfiança e autocontrole que só eles possuem; estavam “dopados” com uma vontade única de vencer e de provar ao mundo que não eram os derrotados como foram nas duas grandes guerras. Eles queriam provar a si e ao mundo que eram verdadeiros vencedores. E conseguiram.

Fritz Walter e Ottmar Walter foram os primeiros irmãos a vencerem uma final de Copa do Mundo.


A revolucionária “Equipe de Ouro” da Hungria.
Em pé: Lóránt, Buzánszky, Hidegkuti, Kocsis, Zakariás, Czibor, Bozsik e Budai.
Sentados: Lantos, Puskás e Grosics.

A impressão na época era que a imprensa mundial estava farta do sucesso dos magiares e todos queriam vê-los derrotados. Mas com 27 gols no total, a Hungria de 1954 detém o recorde de gols marcados em uma única edição de Copa do Mundo. A “Seleção de Ouro” só voltaria a perder outra partida em 1956. Foram mais 18 jogos de invencibilidade. Ou seja, de 55 partidas entre 1950 e 1956, a Hungria perdeu apenas a que não podia: a final da Copa de 1954.

Aos 27 anos, Ferenc Puskás foi eleito o melhor jogador da Copa do Mundo de 1954, mesmo tendo atuado em apenas três das cinco partidas possíveis. Por ter abandonado seu país por causa do levante húngaro de 1956 (que vamos abordar em outro momento), foi suspenso do futebol pela FIFA por 18 meses. Em 1958, ele acertou com o poderoso Real Madrid, naturalizou-se espanhol e disputou a Copa de 1962 pela Espanha, mas sem o mesmo desempenho.

Essa partida é tema central de um dos melhores filmes de ficção sobre Copas do Mundo. “Das Wunder von Bern” (“O milagre de Berna“), lançado em 2003, é um drama de uma família que tenta recomeçar a vida na Alemanha no pós-Guerra. Ele mostra a história de um garoto alemão que vai até Berna assistir à final da Copa do Mundo de 1954, entre seu país e a Hungria. Os alemães depositavam as poucas esperanças em sua seleção, para recuperar um pouco do moral perdido com a Segunda Guerra Mundial, que havia acabado apenas nove anos antes. Merecem destaque as reconstituições de alguns lances da final, com incrível perfeição, mesmo sendo difíceis de fazer.

“No final, levamos o que merecemos. Não deveríamos nunca ter relaxado depois de estar com dois gols de vantagem; devíamos tê-los pressionado e ido atrás do terceiro para liquidar o jogo. A derrota não se deveu a qualquer aspecto de nosso treinamento ou preparação. A culpa foi toda nossa: achamos que tínhamos ganho o jogo, perdemos dois gols estupidamente e deixamos que eles revertessem a situação.” “No final, perdemos porque esquecemos que o jogo dura noventa minutos.” — Ferenc Puskás, tentando explicar a inexplicável derrota.

“Aquele jogo foi perdido por nós, não ganho pelos alemães.” — Gyula Grosics, o número 1 da Equipe de Ouro.


Protocolos iniciais da decisão, com o polêmico trio de arbitragem e os capitães Fritz Walter e Ferenc Puskás (Imagem: DPA)

FICHA TÉCNICA:

 

ALEMANHA OCIDENTAL 3 X 2 HUNGRIA

 

Data: 04/07/1954

Horário: 17h00 locais

Estádio: Wankdorf

Público: 62.500

Cidade: Berna (Suíça)

Árbitro: William Ling (Inglaterra)

 

ALEMANHA (WM):

HUNGRIA (4-2-4):

1  Toni Turek (G)

1  Gyula Grosics (G)

7  Josef Posipal

2  Jenő Buzánszky

10 Werner Liebrich

3  Gyula Lóránt

3  Werner Kohlmeyer

4  Mihály Lantos

6  Horst Eckel

5  József Bozsik

8  Karl Mai

6  József Zakariás

12 Helmut Rahn

11 Zoltán Czibor

13 Max Morlock

8  Sándor Kocsis

15 Ottmar Walter

9  Nándor Hidegkuti

16 Fritz Walter (C)

10 Ferenc Puskás (C)

20 Hans Schäfer

20 Mihály Tóth

 

Técnico: Sepp Herberger

Técnico: Gusztáv Sebes

 

SUPLENTES:

 

 

22 Heinz Kwiatkowski (G)

21 Sándor Gellér (G)

21 Heinz Kubsch (G)

22 Géza Gulyás (G)

4  Hans Bauer

12 Béla Kárpáti

5  Herbert Erhardt

13 Pál Várhidi

2  Fritz Laband

14 Imre Kovács

11 Karl-Heinz Metzner

15 Ferenc Szojka

19 Alfred Pfaff

16 László Budai

14 Bernhard Klodt

17 Ferenc Machos

17 Richard Herrmann

18 Lajos Csordás

18 Ulrich Biesinger

19 Péter Palotás

9  Paul Mebus

7  József Tóth

 

GOLS:

6′ Ferenc Puskás (HUN)

8′ Zoltán Czibor (HUN)

10′ Max Morlock (ALE)

18′ Helmut Rahn (ALE)

84′ Helmut Rahn (ALE)


Gol do título, marcado pelo ponta direita Helmut Rahn (Imagem localizada no Google)

Gols da partida:

Alguns momentos da final (o gol anulado de Puskás está a partir de 4:36):

Filme “Das Wunder von Bern” (“O milagre de Berna“) completo, dublado em português:

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